quarta-feira, novembro 30, 2005

“O anjo”

O anjo é pequenino e cheio de luz e de riso.
O anjo diz coisas enquanto anda na rua e enche o meu coração. Tão profundamente. O anjo faz palhaçadas à saída do supermercado, para se rir e para me fazer rir. E eu rio com as palhaçadas do anjo.
O anjo fala com as pessoas, normalmente, sem medo. Não é como alguns adultos, como o pai, por exemplo, que fala pouco. O anjo dá conversa a toda a gente. E fala a sério, sempre. Se a menina do supermercado lhe pergunta se o anjo não trouxe o que queria, porque o anjo está com, segundo ela, carinha de quem está desolado, o anjo diz que queria os iogurtes de mousse e que o pai comprou, e mostra-os e tudo. E faz o pai sorrir. Desde dentro.

O anjo, quando o pai recebe visitas, fica muito contente. Gosta de ter a casa com amigos e amigas do pai. E gosta de falar com as pessoas. E as pessoas adoram o anjo. E o pai sente-se feliz. E o pai sente tanto orgulho no anjo...

O anjo, quando chega a hora de jantar, está cheios de fome e come com vontade mesmo. E come tudo. E depois fica cansado de comer. E até nem sabe se prefere iogurte Nesquik ou de mousse, e o pai escolhe porque o anjo está muito cansado para escolher... E o pai escolhe, e comem os dois mousse, e o anjo fica muito contente por estar a comer a mesma coisa que o pai. E o pai fica feliz por estar a mesma coisa que o anjo.

O anjo, antes de dormir, às vezes joga com o pai um jogo que ainda não tem nome, mas que se joga numa cama com duas raquetes de pingue-pongue e uma bola. E a bola anda aos saltos pelo quarto. E o anjo ri, ri, ri... E o pai do anjo também ri, ri, ri...

O anjo, antes de dormir, diz coisas bonitas. “Pai, és muito lindo”. Não, meu anjo. Tu é que és Lindo. Lindo.

O anjo levanta-se da cama para pedir uma bolacha. Faz isto todos os dias. E come a bolacha e dá um beijo ao pai e vai para a cama.

E depois o anjo dorme. E o pai chega à cama e vê o anjo a dormir. E sente um aperto tão forte no coração... O anjo é tão Lindo...

O pai lê antes de dormir... Lê muito. E sabes, anjo, que é lindo ouvir-te respirar no silêncio de todas as outras coisas? É lindo ouvir-te dormir, anjo...

E o pai não tem sono e vem escrever. E trás o anjo no coração. Sempre. O anjo está sempre no coração do pai.

E o coração do pai é infinitamente mais bonito porque o anjo existe.

quarta-feira, novembro 23, 2005

A hora límpida

É de manhã que as luzes são mais fortes, mais puras, mais cortantes
É nessa limpidez de lâmina que vejo com mais clareza a força de destino
Que trazes à minha vida, aos meus dias, a cada minuto de cada hora, sem que, tantas vezes, eu desse milagre me aperceba.
A vida passa, continuamente, e tudo nos parece uma interminável sucessão de acontecimentos, de coisas que levam umas às outras, pontos mortos para descansarmos. E no fim disto tudo, o que temos são os dias que se somam, a idade que aumenta, às vezes uma indelével sensação de tempo perdido que fica em cada momento que passa.
Porque há que pensar. Porque há que saber exactamente o que fazemos aqui. Porque há que encontrar no meio das coisas ou fora delas, o grande sentido da nossa vida, a paixão maior, a grande força orientadora.
A minha vida é isto. Sempre foi isto. Todos os anos de vida foram isto. A busca, a procura, o querer achar esse algo, essa coisa, isso que me motivasse e me superasse.
Os anos passam, e a consciência que ganhamos é que é nos próprios dias que devemos procurar. Não é na filosofia, na sociologia, na literatura, no academismo da poesia, na intelectualidade vazia dos nossos tempos. Não é aí.
É aqui. Na manhã. Nas luzes fortes. Puras.
No teu sorriso cortante.
Na limpidez de lâmina das escolhas que, serenamente, fazemos.

Amo-te.

quarta-feira, novembro 16, 2005




Ontem e hoje ficaste comigo. É lindo ver-te acordar. A forma como eu ainda consigo trazer-te para o dia, devagarinho, para que não fiques aborrecido (és tão como eu, nisso...), e depois te faço estourar em gargalhadas. Começas o dia a rir e isso vale tudo! Vale todo o teu dia e vale todo o meu dia também. Porque é bom ter um pai palhaço que, além de ser pai, faz palhaçadas para os meninos rirem logo de manhã. E aproveita, e como o pai gosta de o que faz, ri também. Os palhacitos que se riem de si próprios.

És uma força enorme. És uma fonte de vida incomensurável. És uma nascente de algo tão profundo que não consigo ainda definir o que é exactamente.

Às vezes detenho-me no teu riso. No teu riso solto quando fazes algo engraçado, ou quando eu digo algo a que achas piada. E é estranho, porque há uma ambivalência tão grande. Posso escrever isto, porque quando o leres, terás idade suficiente para compreender o que quero dizer exactamente. Apesar de falar do Du aos 5 anos, será o Du com 15 ou 16 que lerá isto. Existe uma ambivalência quando sorris porque esse momento é perfeito, é pleno. E, de súbito, como um reverso exacto dessa plenitude, por vezes sinto um frio na alma, um medo de um dia não saber despertar esse sorriso em ti, um medo de que um dia sorrias pouco dessa forma. Eu, quando tinha a tua idade ria assim, como tu. E hoje, ainda o faço, mas é raro, porque algo me fez perder essa capacidade.

Estou aqui sempre, todos os dias. Mesmo quando não estou perto, estou sempre próximo, a segurar o teu riso, a tua capacidade de explosão numa gargalhada, a tua capacidade de refazer toda a Luz e toda a Beleza do Mundo num movimento sonoro de Alegria Pura.

Amo-te, Duarte.